Futebol, patriotismo e cerveja |
Por Lilia Diniz. Observatório da Imprensa
Copa do Mundo, a maior festa esporte no Brasil. Em frente à TV, milhões de telespectadores de todas as idades torcem entusiasmados pela seleção brasileira. Dentro dos gramados, nossos craques vendem saúde e... cerveja. Em 2010, a marca Brahma financia quatro jogadores brasileiros e é uma das patrocinadoras oficiais Copa do Mundo realizada na África do Sul. A venda da bebida é lícita e o hábito de acompanhar os jogos de futebol com cerveja é um traço da cultura brasileira, mas é aceitável que um produto cujos malefícios são comprovados cientificamente associe a sua marca à pratica do esporte?
O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (15/6) pela TV Brasil discutiu a publicidade de bebida alcoólica em eventos esportivos com a presença de dois convidados no estúdio de São Paulo. Erich Beting, diretor da Máquina do Esporte, empresa de cobertura dos negócios do esporte no Brasil e comentarista do canal BandSports é consultor editorial da Universidade do Futebol. Ronaldo Laranjeira é professor titular de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo e coordenador do Instituto Nacional de Políticas do Álcool e Drogas (INPAD) do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq). É PhD em psiquiatria pela Universidade de Londres.
O jornalista e apresentador Alberto Dines explicou que a produção do Observatório entrou em contato com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) para saber como a entidade avalia a associação da seleção brasileira com uma marca de cerveja e a assessoria de imprensa garantiu que o time não tem nenhuma bebida alcoólica entre seus patrocinadores. Dines ponderou que a resposta é "curiosa", uma vez que o treinador Dunga e outros jogadores aparecem em comerciais com a camisa amarela.
Patrocina ou não?
O mediador do programa destacou que a explicação fica mais inconsistente porque o site da Brahma assegura que a marca é uma das patrocinadoras oficiais da seleção. O Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar) também foi convidado para o debate, mas não pode participar e enviou uma nota (ver íntegra abaixo) na qual afirma que a entidade veta a associação de marcas de bebidas alcoólicas a uniformes de esportes olímpicos e quaisquer apelos que sensibilizem diretamente o público menor de idade.
Em editorial, Alberto Dines ressaltou que quem manda fora dos gramados é a cerveja. "O anúncio de cerveja não é uma peça subliminar, disfarçada: o anúncio de cerveja é concebido para estimular diretamente o consumo da bebida, bebida alcoólica. E, ao associá-la à sensação de alegria e triunfo, emite-se uma mensagem clara: seja um vitorioso também, tome a sua cervejinha ao lado de uma estonteante morena brasileira ou loura importada." Dines sublinhou que o Conar só obedece a uma lei: "crescer sem controles e sem regulação".
A reportagem exibida pelo Observatório entrevistou Robert Galbrait, repórter especial da revista Meio e Mensagem. Galbrait explicou que em 2006 "toda a visibilidade" era concentrada na marca de cerveja Budweiser. Mas, depois da última Copa, o mercado das cervejas ficou mais complexo e a Ferderação Internacional de Futebol Associado (Fifa) precisou mudar o contrato. "A Inbev Anheuser-Busch virou o grande conglomerado mundial das cervejas, de maneira que o marketing desta nova corporação decidiu rever o acordo com a Fifa para fazer com que todas as suas marcas pudessem ser exibidas com este contrato de patrocínio", explicou.
Seleção guerreira
De acordo com o novo contrato, as marcas exibidas nas placas dos estádios durante os jogos serão as comercializadas nos países que estão em campo. Com isso, a Brahma pode entrar no time das marcas que serão exibidas na Copa. No Brasil, a marca de cerveja lançou sua campanha antes do início do torneio. Na peça publicitária veiculada pela televisão, Dunga e a seleção eram apresentados como "guerreiros".
Para Eduardo Tironi, diretor-executivo de Mídias Digitais do diário Lance!, o futebol brasileiro é "mais artístico" e, por isso, bem diferente do apresentado na propaganda. Tironi avalia que o fato de o técnico Dunga – que na sua vida pessoal e na atuação como comandante da seleção sempre buscou valorizar aspectos como "retidão, compromisso e patriotismo" – fazer propaganda de cerveja o deixa em uma posição contraditória. "Ao mesmo tempo em que o Dunga não aceita indisciplina em seu grupo, quer dedicação total, quer treinamento, exige ao máximo de seus comandados, ele faz propaganda de um produto que vai um pouco na contramão disso que ele prega", avaliou.
O desembargador Aloísio de Toledo César se disse "horrorizado" com o que acompanha pela televisão e criticou o fato de os jogadores, e principalmente o técnico Dunga, receberem altas quantias para fazer publicidade de bebida alcoólica. Já Robert Galbrait minimizou o impacto da publicidade: "Sinceramente, eu não consigo acreditar que uma criança vá ver uma marca – Brahma – e associar com o consumo de álcool".
Ilana Pinsk, vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), avalia que a ligação do álcool com o esporte "não tem sentido" porque uma pessoa que consuma exageradamente o produto não terá capacidade de apresentar um bom desempenho no esporte.
A palavra da Ambev
Milton Seligman, diretor de relações corporativas e comunicação da Companhia de Bebidas da Américas (AmBev), disse que a empresa assina os comerciais da Brahma, que é patrocinadora, mas no uniforme da seleção usa a marca de um refrigerante. "Cervejas patrocinam times de futebol no mundo todo. No caso da companhia, nós patrocinamos a seleção brasileira e a seleção argentina. Na verdade, há muitos anos, a Quilmes patrocina a seleção da argentina e há dez anos a Ambev patrocina a seleção brasileira. Na camisa do Brasil, à exceção da grande maioria dos países e seguindo rigorosamente a autorregulamentação, nós usamos a marca Guaraná Antártica", ponderou.
Seligman destacou que as pesquisas mostram que o futebol – tanto em termos de audiência pela TV quanto em relação ao público que assiste às partidas nos estádios – é um esporte acompanhado majoritariamente por adultos; por isso, não há problema em fazer propaganda de álcool ligada ao futebol. Sobre o horário em que os comerciais são veiculados, Seligman afirmou que a bebida é anunciada em programas dirigidos ao público adulto, independente da hora em que são transmitidos. O uso de ídolos do esporte em comerciais de bebida é válido, na opinião de Seligman, desde que a publicidade não seja dirigida diretamente ao público infantil ou aos jovens.
No debate ao vivo, Dines pediu a opinião do psiquiatra Ronaldo Laranjeira sobre as afirmações de que as crianças não associam a publicidade de uma marca de cerveja ao consumo de álcool e que o público do futebol é majoritariamente adulto. "É surpreendente. Eu não sei em que mundo essas pessoas vivem, em que bombardear todos os dias as nossas crianças com propaganda de cerveja não tem uma influência no seu comportamento", criticou Laranjeira. Na sua opinião, as pessoas que associam os símbolos nacionais com a propaganda de cerveja estão cometendo um crime contra os valores da sociedade brasileira, que se expressam claramente em um momento como a Copa do Mundo.
O papel do governo
Laranjeira chamou a atenção para o fato de que a Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou recentemente uma resolução segundo a qual, dentro das políticas mundiais de combate ao consumo excessivo de álcool, é preciso restringir ao máximo as propagandas de cerveja. Estas causam impacto maior na parcela da população que ainda não desenvolveu um padrão de consumo: as crianças e adolescentes. Para Laranjeira, o Ministério da Saúde poderia utilizar a resolução da OMS para promover um debate público sobre o tema. Na visão do psiquiatra, o ministério perdeu a chance de ter um papel de liderança e de se opor à "venda de valores nacionais pela CBF".
Dines perguntou a Erich Beting se a publicidade de bebida alcoólica poderia ser banida do futebol da mesma forma como, no passado, a propaganda de cigarro foi proibida em eventos automobilísticos. Beting disse que o caminho é o próprio esporte negar este tipo de comercial e se colocar em uma posição de soberania. Segundo o jornalista, a CBF fatura mais de 200 milhões de reais em publicidade e o contrato com a AmBev não corresponde a 10% desta soma – portanto, a seleção brasileira não dependeria necessariamente deste patrocinador.
"Cabe ao esporte e às próprias empresas de comunicação não aceitarem esse tipo de publicidade ou colocar-se a serviço desse tipo de indústria. Perde-se um pouco de dinheiro, mas, sem dúvida, ganha-se em retorno de imagem, em retorno institucional e, mais do que isso, o apelo da população que é contra este tipo de associação", avaliou.
Por Lilia Diniz. Observatório da Imprensa
Nenhum comentário:
Postar um comentário